quarta-feira, 12 de julho de 2017

Da indiferença na diferença

A atividade sexual, distinta da sexualidade, está fisiologicamente preparada para assegurar a sobrevivência da espécie, pelo que existe uma componente irracional, reflexa e animal. A sociedade encara exclusivamente o sexo numa perspectiva em que o pénis assume o papel principal, e não considera a penetração como apenas um detalhe da actividade sexual. Para a maioria das pessoas, o normal é conseguir que o pénis mantenha uma erecção de qualidade suficiente que permita o coito e, no final, o orgasmo e a ejaculação. A estimulação manual ou oral é observada como um preliminar imediatamente antes do ato propriamente dito.
Ainda que não certo, é provável que daqui parta a hipótese de que as pessoas com deficiência física adquirida tendem a ser consideradas assexuadas pelas sociedades em que estão inseridas. A crença de que, por terem algum tipo de incapacidade, não são atrativas nem desejáveis (e, como tal, dificilmente encontrarão parceiro), parece ser a principal culpada; um mea culpa ao pressuposto de que estas não possuem necessidades dessa natureza, pela incapacidade de sentir fisiologicamente desejo, também deverá ser requerido.

Efectivamente, a lesão medular tem implicações fisiológicas negativas no desempenho sexual. Em grosso modo, no caso dos homens as dificuldades em obter uma erecção eficaz e consistente para a prática do coito, estão, na maior parte das vezes, presentes. Para além disso, a percepção do orgasmo e a capacidade ejaculatória são, de igual modo, afectadas. As mulheres descrevem diminuição da lubrificação vaginal, para além de ausência de sensação. Assim, deduz-se rapidamente que a maior parte das pessoas com lesão medular não esperam vir a recuperar a sua vida sexual conforme reconhecem ter tido antes do evento traumático.

Parecem ser estas deduções que encaixam na perfeição na confortávelassexualidade: o sistemático comportamento de evitamento que transparece nas explicações vagas e no negligenciar de práticas interventivas e orientações concretas, que possam melhorar a vida sexual das pessoas com lesão medular, é espelho disso.

Em Portugal apesar dos profissionais de saúde transmitirem a ideia de que conversam com estas pessoas acerca da sua nova condição sexual, esse facto não é evidenciado nas publicações existentes, nem em estudos recentes que deram voz à população em causa. Temas como o amor romântico, a intimidade e a sexualidade, raramente são abordados, negligenciando-se, assim, expressões de sexualidade como promotoras do auto-conceito e autoestima.
Em Portugal apesar dos profissionais de saúde transmitirem a ideia de que conversam com estas pessoas acerca da sua nova condição sexual, esse facto não é evidenciado nas publicações existentes, nem em estudos recentes que deram voz à população em causa

Convenientemente sublinham-se argumentos de que a vida sexual e a sexualidade individual são assuntos da esfera privada, habitualmente partilhados com pessoas afins, porquanto, abordar o tema com terceiros é, normalmente, fonte de inibição, inclusive (sobretudo?) para os profissionais de saúde, mesmo quando integrada num contexto clínico. Também porque é difícil dizer em que momento do processo surge a primeira preocupação de índole sexual, surge outro argumento, escamoteado no luto e na aceitação desta nova realidade, que pode condicionar a intervenção na área da sexualidade. Sabe-se, contudo, que é durante o período de reabilitação inicial que surge a redescoberta sexual, pelo que as informações e orientações podem constituir um contributo importante para a obtenção de resultados positivos em todo o processo de recuperação.

Porém, no seu conjunto, o alheamento face à problemática da reeducação sexual das pessoas com lesão medular, pode resultar da inexistência de um trabalho de equipa organizado e estruturado para este fim. A insegurança quanto aos conhecimentos e quanto ao papel de cada um, poderá ser ultrapassada com a implementação de equipas multidisciplinares de reeducação e reabilitação da vida sexual e da sexualidade, integradas num programa holístico de intervenção. Mas, comum e infelizmente, ao invés de ser encarada como uma actividade estimulante e prazerosa, a sexualidade assume contornos de tabu e encerra sólidos obstáculos na sua reabilitação, ignorando e omitindo que o experimentar e o reinventar do significado da sexualidade, são aspectos fundamentais para o processo de uma boa adaptação a uma nova realidade sexual.

Viajando bibliograficamente no tempo, nas décadas de 70 e 80, encontramos optimismo nas profícuas publicações, repletas de propostas de estratégias a implementar, nomeadamente, programas educacionais direccionados às equipas multidisciplinares, com o intuito de incentivar a abordagem à vida sexual destas pessoas ainda durante a fase aguda/período de internamento, promovendo a sua reabilitação holística. Após este período de proficiente produção científica, o vazio é encontrado na literatura, não havendo informação clara de que os referidos programas tivessem sido implementados, nem da avaliação da sua eficácia.
[…] este tema situa-se, aparentemente, na esfera do academicamente pouco ou nada interessante e com fraca razão relevante, logo, pouco apoiado (ignorado) pela comunidade científica. É uma minoria, mas não está na moda

Mas em bom rigor nem tudo tem corrido mal para os homens com lesão medular. A prova disso é a investigação assente nos meios auxiliares de intervenção para a reabilitação (da função) sexual, como a medicação por via sistémica (ex. sildenafil, vardenafil, tadalafil), a medicação por via tópica (ex. alprostadil), os meios mecânicos (ex. bomba de vácuo, implante cirúrgico) e os meios psicoterapêuticos (ex. vertentes de abordagem comportamental, psicanalítica, de orientação dinâmica, de grupo, hipnoterapia, cognitivo-comportamental). De salientar que dos meios psicoterapêuticos, o feedbackapresentado tem-se revelado praticamente nulo.

As mulheres com lesão medular viram/vêm as investigações/intervenções dirigidas para a descoberta do melhor e mais eficaz lubrificante vaginal (de modo a evitar lesões internas, ocasionadas pela ausência de sensibilidade) e para a procriação medicamente assistida. A satisfação sexual feminina e a sua sexualidade, mantém-se lá longe, encerrada nas catacumbas da história da humanidade!

No fundo, este tema situa-se, aparentemente, na esfera do academicamente pouco ou nada interessante e com fraca razão relevante, logo, pouco apoiado (ignorado) pela comunidade científica. É uma minoria, mas não está na moda. Quem desenvolve actividade profissional junto destas pessoas, passa anónimo pelos intervalos da chuva da intervenção, esbarra nas sólidas portas fechadas das mentalidades que insistem no foco da genitalidade e, este sim, constitui o factor mais complexo da acção. Que pena!

Por: Ana Garrett - Fonte: Sociedade Portuguesa de Sexologia Clinica

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